segunda-feira, 15 de março de 2010


Tarde quente

....e foi assim, sem nem pensar porque, ele começara a escrever algumas coisas, nem entusiasmado, nem tampouco aborrecido, apenas escrevia, sem atentar para o barulho do ventilador, constante, ligado para amenizar o calor, nossa, que tarde quente, acendia o cigarro, dava uma tragada, pensava que deveria parar de fumar, como outros tantos pensam o mesmo, nem outros tantos o fazem, entre eles, ele, colocava o cigarro no cinzeiro, lembrava de algo, parava um instante, pensava como dizer, escrever o que lembrara, do que lembrara só conseguia descrever alguns lapsos, breves intervalos com a duração da eternidade, sabe lá que eternidade, talvez a dos segundos, talvez a dos minutos, talvez a das horas, porém sempre eternidade, disso tinha certeza, não se desviara, lembrou, ela dissera, “pareceu texto de Neruda, até de Gabo....amei...você deveria escrever romances! A cena foi tudo de bom...um passar de tempo sem pressa, um viver de verdade o momento...e, óbvio, os beijos roubados, são um romance à parte...onde iam dar, outro romance...e assim escreveríamos um belo livro, a quatro mãos, vários beijos e dois corações....", imagina, esse era um dos motivos de gostar tanto dela - Neruda, Gabo, o que mostrou que a realidade é fantástica, enquanto outros entenderam que ele criara o realismo fantástico -, ora, ora, mal arranhava algumas palavras, mal conseguia colocá-las lado a lado tentando esforçando-se até, dar algum sentido ao que escrevia e ela dissera, “pareceu texto de Neruda, até de Gabo...”, linda, exagerada e exageradamente linda, não, pois é, o que ele escrevera fora uma mensagem para ela, correspondiam-se através de mensagens, mensagem em que ele interferira num texto que ela mandara. Inserira palavras, recriara pensamentos, intenções, atrevidamente interferira, na realidade estabelecera um diálogo com ela através do texto em que ambos declaravam sua paixão pelas palavras, onde criara um encontro, simples como são todos os encontros e, no entanto tão densos, tão carregados de expectativas etc. e tal, imaginara um café, desses anos vinte, trinta, art nouveau, um tanto escuro, um tanto iluminado por uma luz amarelecida, móveis escuros, antigos, cristais, espelhos, café, garçom ao canto, parado, aguardando o pedido, escutando Uno, por coincidência seu tango preferido, tocando baixinho no rádio, si yo tuviera el corazón, el mismo que perdí, si olvidara a la que ayer lo destrozó y pudiera amarte, me abrazaría a tu ilusión para llorar tu amor, nossa, andava sensível aos quereres, aos amores, aos dramas em que tudo se transforma quando nos apaixonamos, aquela paixão insolente que se instala e domina corações outonais, afinal, já tinha lá seus cinqüenta e tantos anos, plenos, vividos e sofridos, como diz o clichê, com algumas alegrias de entremeio, uma certamente, caso contrário, ninguém agüenta, e pensava no pedido, decidira por um espresso, assim, com um s ao invés de x, como manda o figurino, ela hesitava entre um cappuccino e um macchiato, optou por este, e lá estavam, um em frente ao outro, mãos se tocando sobre a mesa, em silêncio, um silêncio que logo seria rompido por ela perguntar, “me queres”, ele, surpreso disse, “te quero, sim, mais do que isso, só que não sei o que é, só sei que é, e é muito bom...”, mais um silêncio, mãos segurando-se mais forte, olhos nos olhos, sorriso esboçado nos rostos, beijaram-se, adivinhando a sequência do diálogo, ....

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